Carta dos compromissos da 46ª Romaria da Terra e das Águas é publicada após término do evento neste domingo
“A solução é sempre a esperança. Uma esperança, porém, que comece a trabalhar, que saiba viver o dia a dia, que procure fazer o trabalho de justiça e libertação com os outros.” (Dom Pedro Casaldáliga)
Entre os dias 07 e 09 de julho de 2023, celebramos a 46ª Romaria da Terra e das Águas, reunindo milhares de romeiros/as vindos/as das comunidades eclesiais, organizações sociais e populares das dioceses do Centro-Oeste, Centro-Norte, Sul e Extremo Sul, Sudoeste da Bahia, Norte e Nordeste de Minas Gerais, Sergipe e Espírito Santo, todos em comunhão no município de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Inspirada pelas ideias e declarações do Papa Francisco, a Romaria teve como tema: Para acabar com a fome neste chão: Terra, Água, Teto, Trabalho e Pão, assim como o lema motivado pela Campanha da Fraternidade: Dai-lhes vós mesmos de comer (Mt. 14, 16).
Desde a Gruta do Bom Jesus e de Nossa Senhora da Soledade, teto de esperança em uma fraternidade autêntica, voltamos nosso olhar para a realidade brasileira. A estrutura política e econômica do país se baseia na exploração da natureza e do povo, principalmente dos/as indígenas, negros/as, mulheres e trabalhadores/as, submetidos/as a constantes violências impunes.
Nosso país ainda sofre os efeitos dos governos anteriores, Temer e Bolsonaro, abertamente contrários aos direitos sociais e a um modelo de convívio com a Terra que promova a vida e não o lucro. A insegurança alimentar e a volta do Brasil ao mapa da fome são gritos que estremecem nossas entranhas e revelam a manutenção da estrutura econômica profundamente desigual. A tese do marco temporal, aprovada na Câmara dos Deputados em maio, conclama toda a sociedade brasileira ao dever da Verdade: o Brasil é terra indígena, não pactuamos com as tentativas de tornar invisíveis os povos originários e suas lutas. Com veemência, nos unimos em defesa dos trabalhadores e trabalhadoras sem terra, alvos de ruralistas e grandes latifundiários no Congresso Nacional.
Com as crianças, adolescentes, jovens, mulheres e homens que peregrinam por direitos no campo e nas margens dos rios, nós, Romeiros/as da Terra e das Águas, denunciamos a morte de nossos e nossas mártires do povo e proclamamos que os marcos de um território são estabelecidos pelo tempo de nossa presença, o cuidado com a natureza e o sangue derramado sobre ele.
A Gruta do Bom Jesus, margeada pelas águas do Rio São Francisco, faz ecoar esse nosso desejo de liberdade e justiça. A Romaria é lugar de renovar o compromisso com a defesa dos direitos humanos, dar visibilidade às experiências de protagonismo popular e fortalecer a democracia, para a luta diária pela vida.
Na diversidade dos plenarinhos com suas partilhas de histórias, memórias, experiências de lutas e vida, acolhemos as reflexões de desafios, esperanças e compromissos com a síntese de múltiplas vozes do Cerrado, da Caatinga e da Mata Atlântica.
Fé e Política
A plenária foi inspirada por Carolina Maria de Jesus, a partir da sua reflexão de que “quem inventou a fome são os que comem”, e da contribuição de outras mulheres negras na denúncia, no engajamento e no enfrentamento às diversas realidades que matam as populações mais vulneráveis e excluídas. As reflexões destacaram que a profecia não pode morrer, que a fome não é projeto de Deus, que é preciso incidir nas estruturas sociais e que a política de Jesus é o amor sem medidas. Nesse sentido, o compromisso assumido pelo plenário foi retomar as lutas populares e incidências nos espaços de políticas públicas e elaboração de orçamento, garantindo o protagonismo das mulheres e o profetismo.
Terra e Território
O Plenarinho tradicional da Romaria foi inspirado nos Pataxós, assassinados no Sul da Bahia, e refletiu sobre as contradições e luzes que acompanham as lutas na/pela terra e território. Os/as participantes destacaram a resistência diante das ameaças, ataques e assassinatos no campo, bem como os ataques institucionais, criminalização dos movimentos e organizações sociais, bem como a instalação da CPI do MST – que expressa a intransigência dos ricos com a democracia. Diante desse cenário, o Plenarinho destacou as esperanças e os compromissos com a luta: retomadas dos territórios e busca de Demarcações Já; Não à CPI do MST; pelo retorno de políticas públicas para minorar a situação do último período; reflorestamento; e a produção agroecológica com autonomia dos povos.
São Francisco e outras bacias
O Plenarinho foi inspirado em Toinho (pescador e poeta de Alagoas que dedicou 91 anos de luta e poesia em defesa do rio São Francisco), reafirmando os direitos da natureza para a garantia da vida. As reflexões do plenário retomaram os ensinamentos da ecologia integral e das iniciativas exitosas de proteção e defesa dos rios enquanto experiências que inspiram outros municípios. O compromisso fundamental assumido foi o de mobilizar a sociedade pelos direitos dos rios em leis municipais.
Juventude
O Plenarinho “Juventude e Casa Comum: Caminhos do Bem Viver” foi inspirado em Bernardino Alves. O plenário destacou a animação e rebeldia dos jovens presentes, assim como os desafios que as juventudes enfrentam nos territórios. A juventude presente se comprometeu em construir um subsídio para a preparação prévia das juventudes sobre o tema do plenarinho, a fim de facilitar o debate e potencializar a formação; aproximar-se das juventudes indígenas; inserir o debate e estudo da economia de Francisco e Clara em nosso quotidiano, e buscar parcerias para alcançar uma articulação mais efetiva.
Crianças
No mês em que o Estatuto da Criança e Adolescente completa 33 anos, falar de alimentação com as crianças é discutir sobre garantia de direitos, pois o acesso à alimentação está garantido na lei e corresponde ao direito à vida. O plenarinho “Criança se Alimenta com Comida de Verdade” teve como inspiradores as crianças Yanomamis. De forma lúdica e criativa, as crianças participaram e refletiram sobre o tema da Romaria e, através da arte, manifestaram as suas compreensões sobre os desafios. As crianças reconheceram o que as ajudam a se alimentarem de forma saudável e, a partir de desenhos, assumiram seus compromissos: se alimentarem com comida de verdade, comer mais frutas, verduras, legumes, proteínas e água, mais que doce.
Nessa Romaria, unimos nossos clamores àqueles/as que encontram no olhar, cuidado e profecia do Papa Francisco um compromisso de alento e força: “Irmãs e irmãos, estou convencido de que o mundo se vê mais claramente a partir das periferias. Sigam impulsionando sua agenda de terra, teto e trabalho. Sigam sonhando juntos. E obrigado – obrigado seriamente – por deixar-me sonhar com vocês.”
Na diversidade das realidades e das vivências, de cada delegação que chegou, a experiência acolhedora da Romaria nos confirma que os desafios impostos pelas estruturas, embora sejam muitas vezes criminosos e cruéis, nos tornam cada vez mais irmãos/ãs. Ao retomar o caminho para nossas casas, queremos partilhar com toda a sociedade nossa renovada alegria pelo encontro desses dias e nossa firme certeza: o projeto de Jesus é um projeto de vida em abundância para todas e todos. Não se acaba com a fome com discursos, mas com terra, água, teto, trabalho e pão para todas e todos. Por isso, nos comprometemos a permanecer em peregrinação em favor dos que mais sofrem até que todos/as partilhem da abundância que o Senhor nos oferece.