Uma nova praga para os jovens: cigarros eletrônicos viram febre e criam legião de viciados em nicotina
Vape ou pod. O nome é simpático. Seus formatos também – muitas vezes, simulam um pendrive ou um batom. O sabor também é atraente, vai de menta até algodão doce. Prometem não só glamour, mas ainda auxílio na tentativa de largar o vício do tabaco. Mas, por trás de tudo isso, a face verdadeira dos cigarros eletrônicos escondem mais de duas mil substâncias prejudiciais ao pulmão e níveis de nicotina muito superiores ao que é encontrado no cigarro tradicional. O dispositivo, que de inofensivo tem nada, se tornou uma armadilha que ameaça a saúde pública, sobretudo para os jovens.
Os cigarros eletrônicos surgiram no exterior como uma alternativa ao hábito de fumar ou até uma estratégia para ajudar a largar o vício. Mito. Um mito com consequências perversas e geracionais. O dispositivo definitivamente não é prescrito para isso e não auxilia nesse processo. Ele, na verdade, tem muito mais nicotina. Exames realizados pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo indicaram que os níveis da substância em jovens que consomem vape são o equivalente ao consumo de 20 cigarros tradicionais por dia. A média diária do brasileiro fumante é de sete cigarros.
Inimigos desconhecidos
A nicotina é o vilão conhecido dessa história, mas também fazem parte dessa armadilha outras duas mil substâncias – entre elas produtos cancerígenos e tóxicos que podem causar problemas pulmonares e cardiovasculares. De acordo com a médica pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, uma grande parte desses componentes ainda é desconhecida, mas já se sabe que até metais pesados são liberados durante o aquecimento do líquido presente no dispositivo.
“Então, não é só a dependência química causada pela nicotina. É também a exposição a determinadas substâncias que, quando aquecidas a uma temperatura muito alta, seguramente vai causar uma injúria pulmonar”, explicou a pesquisadora em entrevista à Rádio Metropole.
Danos letais
Além do aumento de problemas cardiovasculares, os países que adotam esse tipo de produto estão registrando uma espécie de epidemia de uma síndrome respiratória aguda identificada há três anos e causada pelo consumo do vape. A chamada evali vem se apresentando com sintomas comuns, como tosse, dor torácica, falta de ar, febre, calafrios, mas tem matado rapidamente muitos jovens. Nos Estado Unidos, por exemplo, antes da pandemia da Covid-19, foram relacionadas ao evali mais de 2,8 mil internações e 68 óbitos de jovens. No Brasil, de acordo com a pesquisadora da Fiocruz, as informações são escassas e, talvez por conta disso, ainda não há registro de mortes atribuídas a esse quadro.
Segundo o cirurgião torácico e pesquisador do Senai Cimatec Ricardo Sales, para algumas pessoas, o vape pode ser ainda pior do que o convencional. “A maneira que o cigarro eletrônico é consumido parece uma gordura que você inala e se acumula nos brônquios causando inflamação crônica, fibrose pulmonar. Então, digo que pode ser que seja até pior do que o cigarro convencional, mas ainda estamos acumulando informação para poder afirmar com mais veemência. O que a gente sabe é que causa sim mal e que deve ser evitado”, afirmou em entrevista à Rádio Metropole.
Oferta perversa
Basta uma rápida pesquisa na internet, que o próprio Google elenca e até traça rotas para lojas que comercializam o dispositivo. Nas praias, em portas de bares e restaurantes também não são raros os vendedores oferecendo cigarros eletrônicos. Apesar do fácil acesso, no Brasil, a venda do vape é proibida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) há 14 anos.
Os dispositivos chegam ao país por contrabando ou fabricação clandestina, o que torna a qualidade do produto ainda mais duvidosa. Só nos seis primeirs meses de 2023, a Polícia Rodoviária Federal apreendeu nas rodovias que cortam a Bahia 160 cigarros eletrônicos. O resultado desse cenário enevoado é um número cada vez maior de pessoas caindo nesta armadilha. Uma pesquisa realizada pelo Ipec apontou que só entre 2018 e 2022 o número de pessoas que usam o cigarro eletrônico quadruplicou no Brasil. Passou de 500 mil para 2,2 milhões consumidores.
Novos alvos
Assim como aconteceu com os cigarros convencionais, os eletrônicos chegam ao mercado disfarçados com a sensação de glamour, mas com preços acessíveis. É possível adquirir um vape por menos de R$50. Com todos esses atrativos, os jovens então são as presas perfeitas para esta armadilha.
Por isso, a pesquisadora da Fiocruz é categórica. Para ela, os cigarros eletrônicos são “a nova desgraça que contamina a juventude”. E não é para menos. Um levantamento publicado neste ano, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), mostrou que um em cada cinco brasileiros de 18 a 24 anos já usaram, pelo menos uma vez na vida, o cigarro eletrônico. Dos 2,8 mil internados com evali nos Estados Unidos, 70% tinham menos de 34 anos.
“Não hesito em classificar como a nova desgraça na saúde pública, porque esses jovens vão se tornar uma nova legião de adictos de nicotina em um futuro muito próximo. E as pessoas que conseguiram parar de fumar e estão se iludindo que com o cigarro eletrônico vão poder interromper o vício de novo, elas terão um risco muito grande de se tornar de novo adictos do hábito de fumar”, avaliou Dalcomo.
A indústria de sempre
Se para alguns os dispositivos representam uma falsa sensação de glamour que mais tarde vai se transformar em graves problemas de saúde, para outros, o vape é simplesmente uma forma de recuperar a demanda. Nos últimos 60 anos, o Brasil saiu de 35% para 10% da população fumante. A única prejudicada nisso foi a indústria tabageira, a quem a Organização Mundial da Saúde (OMS) atribui mais de 8 milhões de mortes por ano.
“Quem está produzindo o vape é quem já produzia cigarro. Não são novos produtores, é a mesma origem. Isso não é por acaso e nem é um gesto de bondade a favor da saúde ou do bem comum. São grandes interesses econômicos que estão envolvidos nisso”, avaliou Dalcomo.
Por trás de uma indústria milionária há sempre um forte lobby no Congresso Nacional para defender os interesses de um mercado nem sempre tão saudável. No caso dos vapes não é diferente, há 14 anos a indústria tabageira permanece pressionando para que eles sejam regulamentados, com a desculpa de que isso traria mais segurança para os consumidores. Os legisladores e a Anvisa, no entanto, não têm cedido e os dispositivos continuam proibidos no Brasil. (Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 22 de junho de 2023).