Povos indígenas e tradicionais: MPF aponta retrocessos na política indigenista com Bolsonaro
O Ministério Público Federal (MPF) apontou, em nota divulgada nesta segunda-feira (19), em que se celebra o Dia do Índio, uma série de retrocessos em relação aos direitos dos povos indígenas acumulados ao longo dos últimos três anos, período que coincide com o fim da gestão Michel Temer e o governo Bolsonaro.
No documento, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF destaca que nenhuma terra indígena é delimitada, demarcada ou homologada no país há cerca de três anos. Os procuradores alegam que a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem suas atribuições enfraquecidas desde o início do governo Bolsonaro.
“A omissão na concretização da demarcação de terras indígenas, a desestruturação da Funai e a não adoção de políticas públicas em tempos de pandemia compõem um quadro de violações sem precedentes na atual ordem constitucional”, diz a nota, ao elencar as principais medidas que teriam causado a violação de direitos indígenas no governo Bolsonaro.
Retrocessos do governo Bolsonaro
São inúmeros os atos implementados pelo poder Executivo e listados pelo MPF que teriam acarretado na “redução da força de trabalho” e na “desvirtuação da missão institucional” da Funai. O documento cita, por exemplo, a Instrução Normativa 9 da Funai, editada em abril de 2020, que determinou a exclusão de todas as terras indígenas não regularizadas da base de dados do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef).
Com isso, todos os territórios indígenas que não estavam no último estágio de reconhecimento estatal teriam se tornado “invisíveis”. “Na prática, a instrução permite o reconhecimento de propriedades privadas em áreas reivindicadas por indígenas ou em processo de demarcação”, alega o MPF.
Outro exemplo de retrocesso em relação aos direitos indígenas, segundo o MPF, foi a publicação da Resolução 4, da Funai, em janeiro deste ano. A resolução estabelecia novos critérios de heteroidentificação de povos e indivíduos indígenas para fins de execução de políticas públicas, mas foi suspensa pelo STF dois meses após sua publicação, à pedido do próprio MPF. Segundo o órgão, essa medida buscava “limitar o acesso a políticas públicas específicas para esses povos [indígenas], inclusive na área de saúde”.
O objetivo da medida, do ponto de vista da Funai, era padronizar e dar segurança jurídica ao processo de heteroidentificação, para proteger a identidade indígena e evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais voltados a essa população.
“Tal Resolução poderia vir a ser utilizada como fundamento para recusa na concretização de políticas públicas específicas aos povos indígenas, como a relacionada à saúde”, reafirmou o MPF, em nota divulgada nesta manhã. A autarquia também soma este fato as “sucessivas restrições do Executivo federal” no atendimento e vacinação prioritária a indígenas que vivem em contexto urbano ou em territórios não formalmente demarcados.
O documento ainda relembra a instrução normativa nº 01, editada em fevereiro deste ano pela Funai e pelo Ibama. A medida estabeleceu novos procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizadas em terras indígenas.
De acordo com o MPF, esse ato específico buscou “institucionalizar o arrendamento rural nos territórios indígenas”, o que violaria também uma cláusula da Constituição que determina a reserva de usufruto exclusivo de recursos naturais de terras indígenas aos povos indígenas. Trata-se do § 2º do artigo 231 da Constituição de 1988, que determina que “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
A nota do órgão também destacou que, em abril de 2021, completou-se “um ciclo que já dura três anos sem que nenhuma terra indígena tenha sido delimitada, demarcada ou homologada no país, aprofundando o déficit demarcatório e agravando o quadro de invasões e explorações ilegais desses territórios”.
Vitórias no Legislativo e Judiciário
Em contrapartida as críticas ao governo federal, o documento divulgado pelo MPF também cita medidas positivas do poder Legislativo e do Judiciário em relação aos direitos de povos indígenas, como a derrubada parcial pelo Congresso Nacional de vetos presidenciais ao Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 em territórios indígenas (lei nº 14.021/2020). No entanto, a nota também destaca uma preocupação com a tramitação de projetos que buscam “violar direitos”, como o PL 191/2020, que busca autorizar a mineração em áreas indígenas.
“Outro elogiável ato da Casa Legislativa foi a não conversão em Lei, em maio de 2020, da Medida Provisória nº 910/2019, que se propunha a anistiar a ocupação e o desmatamento de vastas extensões de terras públicas, inclusive em territórios indígenas não definitivamente demarcados”, afirma um trecho da nota do MPF.
O texto também faz elogios a uma série de “providências consideráveis” do Supremo Tribunal Federal (STF) que buscaram “evitar o agravamento do quadro de disruptura institucional da política indigenista”. Entre essas medidas está a negativa do tribunal, em maio de 2020, em julgar, durante a pandemia, processos em que se pleiteiam reintegrações de posse em áreas indígenas. O órgão também elogiou a suspensão pelo STF da resolução nº 4 da Funai, que ocorreu com base em argumentos da própria Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF.
A nota também destaca o reconhecimento, por parte do STF, da legitimidade da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) para “propor ações de controle concentrado de constitucionalidade”, como a adoção, pelo governo federal, de medidas urgentes que contenham a disseminação da covid-19 em terras indígenas.
(Texto: Congresso em Foco)
(Foto: Joabes Rodrigues)
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