Bolsonaro inaugura ponte às margens de terra Yanomami e ignora crise que põe povo indígena na mira de garimpeiros
Presidente inaugurou uma ponte na BR-307 e indígenas e ativistas temem que obra possa facilitar a chegada de mineradores ilegais às aldeias, que são alvo de ataques desde o começo de maio
Em sua primeira visita a uma terra indígena, o presidente Jair Bolsonaro esteve nesta quinta-feira na cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM) para inaugurar uma ponte de madeira de 18 metros de comprimento e sete de largura na BR-307, que liga o município a comunidades Yanomami em Maturacá, uma das que mais sofrem com a mineração ilegal na região. Em sua agenda, Bolsonaro almoçou com autoridades militares, para quem discursou, sem fazer sequer uma menção à crise sanitária e ambiental enfrentada por esse povo indígena, que tem sofrido, nas últimas semanas, ataques de garimpeiros na aldeia Palimiú (localizada às margens do rio Uraricoera, no município de Alto Alegre), além de enfrentar uma grave crise sanitária. Para além da covid-19, os Yanomami enfrentam um problema crônica de falta de acesso à saúde, como evidenciou a foto de uma criança de oito anos pesando apenas 12 quilos, acometida por malária, pneumonia, verminose e desnutrição na aldeia Maimasi, em Roraima.
Dário afirma que é “uma cara-de-pau” de Bolsonaro realizar essa visita em meio à pandemia de covid-19, colocando em risco a saúde de toda a população local e lembra que “inaugurar uma ponte não é responsabilidade do presidente” da República. “Com quase 500.000 pessoas mortas na pandemia, ele quebra um protocolo sanitário ao trazer uma comitiva que pode levar doença às nossas terras. Na aldeia Maturacá, por exemplo, já morreram três pessoas por covid-19″, conta. Ele foi uma das lideranças que assinaram uma carta de repúdio à presença de Bolsonaro no território: “Manifestamos nossa total contrariedade a qualquer iniciativa de abertura das terras indígenas a atividades econômicas, políticas e culturais que venham ameaçar nossa paz e nossa tranquilidade de viver em nossas terras tradicionais conforme nossas tradições, culturas, nossos saberes, valores e modos milenares de vida e de existências”, escreveram.
A visita de Bolsonaro acontece no momento em que o garimpo ilegal na Terra Indígena (TI) Yanomami cresce a um ritmo inédito: somente nos três primeiros meses de 2021, a devastação visível correspondeu a 200 hectares, cerca de 10% de toda a devastação acumulada em 10 anos, como mostra um relatório feito com imagens de satélite e fotografias aéreas obtidas no início de abril por pesquisadores Hutukara Associação Yanomami e divulgado na terça-feira. No ano passado, o mesmo levantamento revelou 500 hectares destruídos, que se somaram a 1.700 hectares devastados desde o início da década passada, quando o garimpo ilegal voltou com intensidade às terras dos povos Yanomami e Ye’kwanas, nos estados de Roraima e Amazonas. No balanço total, a área ocupada pela mineração ilegal é de aproximadamente 2.400 hectares —quase 2.400 estádios do Maracanã.
Estêvão Senra, geógrafo e pesquisador que foi um dos responsáveis pelo relatório, lembra que o garimpo na TI Yanomami é um problema crônico, desde 1980, quando cerca de 40.000 garimpeiros invadiram o território. “Nessa época, 18% dos Yanomami de Roraima morreram por impactos diretos ou indiretos do garimpo em sua saúde”, ressalta. Hoje, entre as áreas de atividade ilegal que se ampliaram está o chamado “Tatuzão do Mutum”, na beira do rio Uraricoera, onde os criminosos têm atacado com disparos de armas de fogo e bombas de gás lacrimogêneo a comunidade de Palimiú. Tais ataques começaram no dia 10 de maio, após a instalação de uma barreira sanitária para proteger a aldeia da covid-19.
As imagens do relatório da Hutukara Associação Yanomami revelam a magnitude da destruição causada na região: em meio às crateras profundas, surgem feridas de terra avermelhada que contrastam com o verde da floresta ao redor. Os garimpeiros são pequenos pontos pretos nesse cenário. Senra e outros técnicos do Instituto Socioambiental (ISA) denunciam o surgimento do que pode ser “uma segunda Serra Pelada”, em referência ao que foi o maior garimpo a céu aberto do mundo, até esgotar o minério, no fim da década de 1980, e que deixou uma crise ambiental e social que persiste ainda hoje naquela região do Pará.
“Depois da demarcação da TI Yanomami em 1992, houve a retirada dos garimpeiros e apenas alguns núcleos permaneceram. Até então, era algo mais disperso, mas hoje observamos uma maior complexidade nessa atividade ilegal”, diz Senra. Segundo ele, as imagens de satélites e sobrevoos já revelavam nos últimos anos o surgimento de uma “cidade do garimpo”, concentrando serviços como mercearias, lojas de produtos de higiene, bares e casas de prostituição. “Operações do Exército chegaram a encontrar até lan houses e consultórios odontológicos próximo desses garimpos”, acrescenta.
Em algumas imagens, é possível observar o fluxo de barcos, aviões e helicópteros que transportam um maquinário caro e pesado. “Hoje em dia, o garimpo ilegal é uma atividade de grandes empresários com capacidade de fazer um investimento logístico enorme. Os garimpeiros são apenas massa de manobra que apoiam o Governo. Eles representam um percentual eleitoral significativo em estados como Roraima”, explica Senra.
Para o geógrafo, a visita de Bolsonaro nesse território será interpretada por esses agentes criminosos como um “sinal verde para continuarem destruindo e atuando ilegalmente”, principalmente no momento em que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 191/2020, que libera a mineração dentro de terras indígenas. “A expansão vertiginosa do garimpo ilegal se relaciona com o desmonte dos órgãos de fiscalização e controle ambiental. Todos os discursos e ações do presidente promovem uma nova corrida do ouro em direção a esses territórios protegidos”, conclui Senra. Fonte: El País.