Aprovação da Lei Geral do Licenciamento Ambiental é um dos maiores retrocessos do Brasil
Um dos maiores retrocessos normativos que o Brasil já presenciou. É assim que ambientalistas, organizações, membros da Academia e especialistas definem a aprovação da Lei Geral do Licenciamento Ambiental. O texto-base foi aprovado na madrugada da última quarta-feira (12), por 300 votos a 122, na Câmara dos Deputados. Os destaques do projeto de novas regras foram votados também na última quinta-feira (13).
O texto final foi encaminhado ao plenário sem ter passado por nenhuma audiência pública. Não houve espaço para acatar nenhuma recomendação da ala ambiental, que alertou sobre diversas vulnerabilidades trazidas pelo texto final. A dispensa expressa de licenças para cultivo de espécies de interesse agrícola, pecuária extensiva e semi-intensiva está entre as medidas mais criticadas pelos ambientalistas.
Especialistas no setor e juristas preveem uma série de ações judiciais envolvendo o assunto, com desdobramentos no Supremo Tribunal Federal (STF), devido a inconstitucionalidades e desrespeito direto ao que está previsto na legislação nacional.
“O que se viu na Câmara dos Deputados foi confusão. Desfiaram discursos em sua grande maioria sem fundamentação, em defesa do “desenvolvimento”, onde a proteção do meio ambiente figurou apenas como empecilho. É desnecessário comentar sobre a capacidade de discernimento dos deputados”, diz artigo do presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, Carlos Bocuhy.
A ONG Greenpeace considerou o projeto “uma afronta à sociedade brasileira” e acusou o governo de Jair Bolsonaro de aproveitar a situação de caos provocada pela pandemia do novo coronavírus “e atender a interesses particulares e do agronegócio”.
“O texto aprovado é tão nefasto que, de uma só vez, põe em risco a Amazônia e demais biomas e os recursos hídricos, e ainda pode resultar na proliferação de tragédias” como as que ocorreram com o rompimento de barragens em Mariana (2015, 19 mortos ) e Brumadinho (2019, 270 mortos), alertou Mauricio Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA).
Desde que chegou ao poder, Bolsonaro debilitou os órgãos de proteção ambiental, enquanto o país enfrenta um forte aumento no desmatamento e a multiplicação dos incêndios florestais.
Frente Parlamentar
A Frente Parlamentar Ambientalista, que reúne 216 deputados e oito senadores, declarou ‘profunda indignação com a aprovação’ do projeto. “É inadmissível que uma proposta como essa seja aprovada pela Câmara dos Deputados diante de tantos desastres ambientais vividos recentemente no país”, afirmou a Frente, por meio de nota. “Provavelmente, com a aprovação desse projeto, o Brasil irá presenciar novos episódios de acidentes socioambientais. Além disso, a medida poderá enfraquecer a segurança jurídica e a judicialização desse importante instrumento ambiental.”
Os parlamentares ambientalistas afirmam que as tragédias que ocorreram em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, deveriam ser exemplos reais da importância de realizar debates aprofundados com a sociedade sobre o aprimoramento dessa ferramenta. “O meio ambiente e a vida dos povos indígenas e originários encontram-se mais do que nunca, ameaçados pela política da ‘boiada livre’. Essa aprovação significa mais uma derrota do Brasil não somente em nível nacional, mas também internacional”, declarou a Frente.
Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas da organização Observatório do Clima, afirma que a Câmara votou “a Lei da Não Licença e do Autolicenciamento”.
“Somando-se as isenções de licença com o autolicenciamento em que foi transformada à licença por adesão e compromisso, sobra pouca coisa para licenciar. Consagra-se o liberou geral. Não é o licenciamento ambiental que trava os investimentos no país. É a falta de planejamento, a visão simplista de curto prazo, a busca por lucro fácil, a ignorância, a corrupção”, comenta Araújo, que é uma das principais especialistas do setor.
“O mundo debatendo a retomada econômica lastreada em uma perspectiva orientada para as questões ambientais e climáticas e a Câmara optando pelo retrocesso. O resultado, se isso virar lei será a luta nos tribunais, tanto em relação ao texto aprovado, quanto em cada um dos licenciamentos ou, corrigindo, dos não licenciamentos.”
Coordenador da Frente, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) afirmou que se trata do fim do licenciamento ambiental no país. “O texto que será aprovado hoje é a pior versão já vista ao longo de 17 anos de tramitação na @camaradeputados. Conseguiram piorar o que já era péssimo. Grave ameaça aos direitos sociais e ambientais”, escreveu.
Desde a semana passada, quando veio à tona o texto final que seria apresentado pelo relator, centenas de organizações ambientais, especialistas no setor, membros da Academia e parlamentares se mobilizaram para tentar demover o presidente da Câmara, Arthur Lira, da ideia de levar uma proposta ao plenário que não chegou a passar por uma única audiência pública. Não houve negociação. Lira, que já havia assumido o compromisso de pautar o assunto apoiado pela Frente Parlamentar Agropecuária, confirmou que levaria a pauta adiante.
Mudanças
Uma das principais mudanças impostas pelo PL diz respeito à dispensa expressa de licenças para cultivo de espécies de interesse agrícola, pecuária extensiva e semi-intensiva, além de pecuária intensiva de pequeno porte. Outros 13 tipos de atividades ficam isentas da obrigação de serem licenciadas. São projetos como obras de transmissão de energia elétrica; sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário; obras de manutenção de infraestrutura em instalações preexistentes, como estradas, além de dragagens (retirada de sedimentos) de rios; usinas de triagem de resíduos sólidos; pátios, estruturas e equipamentos para compostagem de resíduos orgânicos; e usinas de reciclagem de resíduos da construção civil.
Outra mudança imposta pelo projeto da lei prevê o enfraquecimento de regras nacionais que hoje vigoram sobre o setor, repassando a governos estaduais e municípios a atribuição de definir qual tipo de empreendimento precisará de licença ambiental, além do tipo de processo do licenciamento que é aplicado em cada caso.
Avanço
Relator, o deputado Neri Geller (PP-MT), que ocupa a vice-presidência da Frente Parlamentar da Agropecuária, vê a isenção do licenciamento para a atividade agropecuária como um avanço. Pelo texto aprovado, o cultivo de espécies de interesse agrícola, temporárias, semiperenes, perenes e a pecuária extensiva e semi-intensiva estão dispensados de autorização.
“Esse também é um grande avanço para o empreendedorismo para o nosso país. Portanto, seu presidente, no que diz respeito ao licenciamento ambiental do Brasil está muito difícil (…). Principalmente nesse momento de crise econômica, essa lei vai desengessar o Brasil, essa lei vai dar condições de nós voltarmos a criar emprego, a gerar renda, aquecer nossa economia”, defendeu o deputado Darci de Matos (PSD-SC), partido que orientou sua bancada a votar sim pela aprovação da matéria.
Para o deputado Paulo Ganime (Novo-RJ), mudar a legislação ambiental é uma forma de preservar o meio ambiente. “Ninguém aqui quer poluir, desmatar, prejudicar nosso meio ambiente, pelo contrário, A gente quer preservar. E muitas vezes para preservar a gente tem que adequar as leis”, disse.
‘Boiada’
Ao menos três requerimentos para adiar a votação dessa quarta-feira (12) foram apresentados, mas perderam para um coro de 300 deputados.
“Talvez o que não me deixa muito triste com a votação de hoje, porque está tudo armado, porque tudo vai passar com os 300 votos, é que a gente sabe que quando você tira a possibilidade de fazer consulta para 87% dos quilombos, ou 60% dos povos indígenas, porque não têm seus territórios demarcados, o STF vai derrubar. Então nós estamos perdendo tempo aqui. Por que o absurdo que vocês estão enfiando goela abaixo aqui é de tamanha irresponsabilidade que vai contra o país”, disse o deputado Nilto Tatto (PT-SP), que acredita que o projeto será futuramente judicializado, mesmo se passar como está no Senado.
O deputado afirmou que as discussões sobre licenciamento são pautas da OCDE e que os parlamentares estão colocando em risco a economia do país. “Vocês são tão irresponsáveis que vão matar o agronegócio com o trator que vocês estão fazendo por aqui hoje”, disse Tatto.
Para o deputado Camilo Capiberibe (PSB-AP), a votação do marco geral do licenciamento representa o início da boiada no Congresso Nacional. “Logo no início deste ano, depois das eleições das mesas da Câmara e do Senado, o presidente [Bolsonaro] apresentou uma lista com suas prioridades. Entre elas estava a lei geral do licenciamento ambiental, a lei da regularização fundiária, a PL da grilagem, e também a regulamentação da mineração em terras indígenas. Então o que nós estamos vendo não é o fim, é o começo de um processo pensado em destruição”, discursou. “Esse argumento de que vai destravar os investimentos é mentiroso e não é por causa disso que estamos votando essa lei hoje”, complementou.
“Há três argumentos falsos nesse debate. De que ele [o debate] é antigo, não é verdade. De que nós [oposição] não queremos o desenvolvimento e de que nós não queremos prazos. Nós queremos o desenvolvimento sim e nós queremos prazos. É uma irresponsabilidade, depois de Mariana, depois de Brumadinho, depois das crescentes queimadas na Amazônia, do bioma do Pantanal, da desconstrução dos órgãos ambientais, nós votarmos um relatório desse tipo. Pelo amor de Deus, esse parlamento precisa ter responsabilidade”, diz Jandira Feghali (PCdoB-RJ). “Nós não podemos avançar com o relatório dessa forma. Nós estamos descoordenando as exigências nacionais, criando uma brutal insegurança jurídica”, discursou.
Em discurso no plenário, representando a liderança da oposição, o deputado Alexandre Molon (PSB-RJ) afirmou que o projeto destrói a proteção ambiental por um dos seus pilares, que é o licenciamento ambiental. “Falaram aqui do desmatamento, que não há nenhuma brecha no projeto para o desmatamento. Não é uma brecha, há uma porteira toda aberta para o desmatamento. Afinal de contas, a permissão para a pavimentação de estradas, que é um dos principais fatores de desmatamento da Amazônia, está dada nesse projeto de lei. Basta a autodeclaração, a autolicença, a promessa de que não se infringirá nenhuma regra ambiental”.
Nas redes sociais, as ONGs e os ambientalistas puxaram as tags #LicenciamentoFica e #PL3729Não. Não adiantou, por 300 votos e com o argumento de que o país estava se livrando de burocracia, o plenário aprovou o mérito do Projeto de Lei 3729.
Fonte: Dom Total